
Nas áreas rurais da Bolívia, os “chutos” — como são chamados localmente os carros contrabandeados — dominam as estradas de terra, as ruas de vilarejos e até mesmo as capitais regionais.
São veículos, em sua maioria, provenientes do Chile, muitos deles roubados ou introduzidos por meio da zona franca de Iquique, sem pagamento de impostos e com documentação falsificada.
Agora, o principal candidato à presidência da Bolívia, Rodrigo Paz, promete fazer algo que poucos ousaram: legalizar todos eles.
“É como se fosse pecado ter um chuto na Bolívia, quando todo mundo tem um”, declarou Paz em junho à rádio boliviana Erbol. “Vamos legalizá-los.”
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A frase, populista e direta, reverberou não apenas na Bolívia, mas causou um terremoto político no Chile, onde autoridades classificaram a proposta como um incentivo descarado ao crime organizado.
O ministro do Interior chileno, Álvaro Elizalde, afirmou que a legalização de veículos contrabandeados “é um incentivo para continuar cometendo esses atos ilícitos, dentro ou fora do Chile”.
Ele reforçou que o princípio do Estado de Direito deve ser respeitado e cobrou colaboração entre os dois países.
A proposta surgiu antes mesmo da vitória surpreendente de Paz no primeiro turno das eleições bolivianas em agosto.
Mas o assunto só ganhou notoriedade no Chile após o candidato a deputado Sebastián Huerta, da cidade fronteiriça de Arica, publicar um vídeo nas redes sociais exigindo que o governo revogue o regime de visto preferencial com a Bolívia se a medida for adiante.
Outros políticos chilenos também reagiram. “Os insultos e a má-fé de La Paz não ficarão impunes quando estivermos no governo”, declarou Johannes Kaiser, presidenciável de direita que pretende suceder Gabriel Boric.
O episódio acirra ainda mais os ânimos entre dois países historicamente rivais, que romperam relações diplomáticas em 1978 e hoje mantêm apenas contatos pontuais em áreas como comércio e segurança.
O tema, no entanto, também divide opiniões dentro da própria Bolívia. O presidente do sindicato de motoristas profissionais, Victor Tarqui, se posicionou contra a proposta.
“Não vamos permitir. Muitos conseguiram seu carro com muito sacrifício, e agora isso não pode virar pó”, afirmou ao portal Urgente.bo.
Ele ainda alertou para o aumento de comboios ilegais entrando no país não só pelo Chile, mas também pelo Peru.
O tráfico de veículos entre os dois países, muitas vezes associado também ao contrabando de armas, drogas e pessoas, não é novidade, segundo o consultor em crime organizado e ex-oficial de inteligência chileno Pablo Zeballos.
Ele lembra que já houve casos de carros da própria polícia chilena sendo encontrados na Bolívia. “A proposta pode, na prática, incentivar ainda mais a atividade ilegal”, afirmou.
E de fato, os números preocupam. Somente em julho, dois Mazdas foram identificados como roubados no Chile e localizados em território boliviano. Em março, um ônibus Mercedes Benz com placas chilenas foi encontrado em situação semelhante.
A cidade de Challapata, no departamento de Oruro, é conhecida nas redes sociais como “terra dos chuteros”, tamanho o volume de veículos ilegais circulando por lá.
A proposta de Paz não é inédita. Governos anteriores, como o do ex-presidente Jorge Quiroga, que enfrentará Paz no segundo turno em 19 de outubro, já lançaram decretos para regularizar parcialmente a frota ilegal.
Mas o clima atual é diferente, com as eleições de ambos os países se aproximando e o tema ganhando proporções diplomáticas.
Paz, tentando contornar a tensão, gravou um vídeo no TikTok convidando o presidente do Senado chileno, Manuel José Ossandón, para tomar uma sopa apimentada típica da Bolívia em La Paz e discutir o assunto “como bons vizinhos”.
Ossandón, por sua vez, pediu ao governo chileno que emita uma nota diplomática exigindo esclarecimentos.
No pano de fundo dessa polêmica está a realidade econômica de dois países com trajetórias muito diferentes. O Chile é uma das economias mais sólidas da América Latina, enquanto a Bolívia vive uma desaceleração drástica após o fim de um ciclo de crescimento impulsionado por commodities.
Para Zeballos, o risco não é apenas jurídico ou diplomático, mas estrutural: “Ao promover a informalidade, o que se fortalece são as economias paralelas associadas ao crime organizado.”
Se a proposta for levada adiante, a legalização dos chuteros pode até render votos — mas também promete acirrar os conflitos diplomáticos e sociais de um país já dividido entre a legalidade e a sobrevivência informal.
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